terça-feira, fevereiro 06, 2007

Diário de Miguel Torga

O tecto do velho casarão do hospital só não caiu porque isso da matéria às vezes resiste muito.
Era na hora da aceitação. A ficha pedia respostas curtas e concretas
-Profissão?
- Meretriz.
-Filhos?
- Oito
-Quantos?
- Oito
- E todos desde que…
- Todos
Serena, como se tivesse dito uma coisa sem qualquer importância, continuou de pé, encostada à parede.
-Sente-se
- Com licença.
Amparou a barriga desmedida, acomodou-se no banco, e continuou a responder.
-Abortos?
- Nenhum
- Nenhum?!!!
- Não senhor
- Na sua vida, de mais a mais…
- Nenhum. Nunca quis.
- E os filhos? Vivos ou mortos?
- Todos vivos e sãos.
- Criados lá?!
- Pois
As letras do assento oscilavam, inseguras, no papel. Firme só ela, desgraçada, mas com a sua folha de mãe corrida e limpa.
Muito bem. Suba.
O nono rebento nasceu como o de qualquer outra mulher honrada e a parturiente teve alta esta manhã.
- Vou mandar-lhe umas coisas – prometeu um colega, rendido a semelhante grandeza. E acrescentou só para mim:
- Quero auxiliá-la. Isto é tudo uma miséria, mas diante de uma pureza assim, é preciso que ao menos a gente só assine vencido.
- Acho bem que a proteja – respondi-lhe, a olhá-lo bem.
- Mas se quer de facto ajudá-la, siga-lhe o exemplo, e nem mesmo vencido assine.


Miguel Torga
28 de Abril de 1943